Corpo-diapasão

Mas pra saber qual diapasão eu sou, às vezes a gente tem que ser alguns outros até entender: eu não sou um dó, eu não sou um sol. Tudo bem o dó e o sol existirem, mas eu sou um ré!

Andrea Drigo

 

Entrevistadoras: Gisele Lavalle e Nathalia Leter

Ilustrações: Andrea Drigo

Gisele – Eu acho que seria legal a gente começar a entrevista falando sobre o corpo-diapasão. E a partir disso a gente pode dar uma esmiuçada em outros conceitos. Pode ser?

Andrea – Claro. Bom, a gente vai pra origem da palavra, que é grega. Diapasão é dia – ‘através’ – e pasão, que é do Deus Pã – ‘todo’. Através de tudo! Então, o que é um diapasão? É um garfo e pelo tamanho dele, ele vai ter uma frequência X, que vai vibrar X frequências por segundo e vai chegar em uma determinada altura. Mas pra que ele reverbere, ele precisa ser tocado, acionado. Então, eu fui fazendo esta analogia do diapasão com a gente, com o ser humano. Como se este toque fosse o momento em que a gente acorda a consciência. Porque até esta consciência ser tocada, a gente é como um diapasão em potencial. Ele tem o desenho de diapasão, o jeito de um diapasão, mas ele ainda não está atuando como um diapasão. Na hora em que você é tocado pela consciência…o que é esta consciência? É quando a gente faz aquela perguntinha básica: o que eu estou fazendo aqui? Qual o meu propósito? O que eu quero fazer? Neste momento começa a vir a consciência e o nosso diapasão começa a ser tocado. Mas a gente não tem consciência de que a gente é um diapasão, de que a gente é um corpo-diapasão, então todas as frequências que passam pela gente, a gente toma como se fossem nossas…isso é meu! Faz de conta que eu sou um diapasão ré. Eu sou um ré. Eu tenho a frequência de 180 ciclos por segundo. Eu só não tenho a consciência de que eu sou um ré, mas eu sou. E nesse ré vão passar várias frequências por ele, mas que frequência vai continuar dando movimento pra que ele continue ressoando? São alturas afins, por exemplo um lá, um fá. Um mi já vai dar uma dissonância. Vai ressoar, mas por pouquíssimo tempo e aí, as ondas vão começar a se anular até parar o movimento. Então, se eu não sei muito bem o que eu sou, eu fico vibrando em um mi. Por exemplo, eu sou um ré e fico vibrando em um mi. Eu sou este ré e este ré era pra ser cantor, mas como eu não sei porque não chegou a consciência ainda, eu vou ser…arquiteta. Eu posso até ir, me formo e tal, mas chega uma hora em que esta frequência começa a ser anulada porque eu estou fazendo uma coisa que não tem a ver com a minha essência. Aí, entra a essência. O que é a essência? Onde e como eu reverbero? Qual a minha frequência? Na minha leitura, essência tem a ver com frequência. Então, qual o meu diapasão? Mas pra saber qual diapasão eu sou, às vezes a gente tem que ser alguns outros até entender: eu não sou um dó, eu não sou um sol. Tudo bem o dó e o sol existirem, mas eu sou um ré!

Gisele – Outro dia você falou que um diapasão pode ocupar um outro espaço, que não o dele, dentro da escala cromática. Que ele pode forçar um pouco a barra, os outros podem dar um espacinho pra ele entrar e ele acaba ficando lá. Todo mundo está meio desconfortável, mas ele consegue ocupar um espaço X. Esta imagem me remeteu ao exercício do kinojô: quando a gente está de frente para uma outra pessoa, naquela situação em que cada um tem que dar 50%, uma das duas pessoas pode dar muito pouco ou quase nada. E pode ser que a outra resolva dar um pouco mais de 50% só pra que aquele encontro reverbere, ressoe mais. Sem querer falar em certo e errado, fiquei me perguntando: será que é legal dar estes espacinhos a mais pro outro entrar, até para que ele saia depois, ou é melhor que a gente se mantenha nos nossos 50%?

Andrea – Este é o drama da vida, né? Primeira coisa: o quanto a gente tem consciência de tudo isso? Porque na maior parte das vezes, tudo isso é feito em um plano completamente inconsciente. E isso começa desde cedo – as concessões que a gente faz com a nossa família e o que pai, mãe, irmão fazem com a gente. O que seria uma família harmoniosa? Eu sou o diapasão X e ocupo este espaço, você é Y e você ocupa aquele. Mesmo que tenha dissonâncias entre a gente, tudo bem porque elas são bem importantes pra gerar movimento. Bom, então, primeiro tem isso: o quanto eu tenho consciência de que eu estou dando um espaço, saindo do meu espaço para que outro diapasão caiba, sendo que nem é o espaço dele, já é uma questão. Agora, se eu tenho esta consciência e você deu um pouquinho…porque quem sabe assim, ele vai ver que está ocupando um espaço que não é dele, aí, ele pode ser expelido e vir a encontrar o seu espaço próprio… mas estes são jogos de força dos quais a gente não tem muita noção. Agora, o que a gente trabalha? Ter consciência para enxergar. Igual no kinojô, eu estou lá, tenho que dar 50% e a outra pessoa tem que dar 50% pra se fazer uma terceira voz, pra que aconteça uma terceira voz. Este é um exercício muito legal pra gente perceber o quanto a gente cede o nosso espaço e também o quanto a gente vai lá e pega o outro e quer pôr no nosso espaço. Fala: vem pra cá que aqui é bom pra você, que no kinojô seria a pessoa está dando 30%, você vai lá e põe 70%. Se você colocou 70%, você invadiu 20% do espaço do outro. Então, como a gente suporta dar os nossos 50% e permanecer ali, mesmo sabendo que a gente teria até energia para dar mais e chamar o outro, mas a gente, por amor à liberdade, a gente fica nos nossos 50%.

Gisele – Dé, pode falar um pouco das vozes dissonantes e dos movimentos criados?

Andrea – Bom, tudo a gente pode encontrar nos diapasões, né? Então, tem diapasões que são consonantes, são energias afins, eles vão se nutrindo. Então, uma terça, uma quinta, uma oitava…elas vão se nutrir. Só que chega um momento que se a gente só fica na consonância…é bem esta questão do I Ching da Abundância. Chega uma hora que é da natureza, do ápice da abundância começar um outro ciclo. Na natureza não existe um lugar que seja eterno porque existe mutável e imutável. Até pra que a própria abundância possa existir, ela precisa ter o declínio dela pra que venha, pra que nasça uma nova abundância. Então, neste declínio…porque a gente tenta eliminar estes julgamentos, né? Que declínio é ruim, que abundância é bom, que escassez é ruim. Na música fica muito claro isso. Então, você tem uma abundância de consonância. Só que chega uma hora em que se você só fica na consonância, vai ficar monótono e não vai mais ter progresso. É aquela vilazinha que: nossa, que abundância ali, mas não vai ter progresso. Pra ter progresso naquele lugar vai ter que vir a dissonância. E é na dissonância que gera o movimento. E aí é a mesma história: se eu só fico na dissonância, vai começar a destruição. E é importante que a gente tenha noção do tempo desta dissonância porque se a gente perde a mão também na dissonância, a gente vai entrando num caos, em uma ilusão muito grande. Vai perdendo, vai se esquecendo do momento de paz, vai se esquecendo que existe paz. Você vai entrando naquilo e tudo pode virar um vício. Então, a gente também tem que saber os momentos, né? O tempo da abundância, o tempo que eu estou chamando de consonância, e o tempo destas dissonâncias pra gerar um novo estágio pra própria abundância. Porque, se não, chega uma hora em que ela vai acabar porque ela precisa passar por um novo estágio que durante um certo intervalo vai ser lido como perda dos sentidos, a noite escura da alma. Muitos místicos passam por este momento, né?

Gisele – Vamos também falar sobre as vozes harmônicas e o movimento espiralado?

Andrea – Então, tudo tem a ver com o movimento. Quando a gente chama a consciência e sabe que pra permanecer em tempo de presença, o som tem que permanecer em movimento, eu já levo em consideração que a natureza do seu movimento é espiralado, tanto pra cima como pra baixo. Precisa destes dois movimentos pra cima e pra baixo e quem é a consciência entre o 1 e o 3, é o 2. O 2 é a consciência deste tempo de presença, de que está acontecendo este espiralado…este espira alado. Então, se eu estou no meu tempo de presença, eu não vou achar que é legal o espiralado do 3 e nem que é legal o espiralado do 1. Eu fico simplesmente pulsando. Aí, a gente traz mais um elemento, que é o pulso. O que faz a gente manter a presença na permanência e na impermanência é manter o pulso, que é manter o movimento. Então, a gente pode pensar que movimento e pulso também podem ter a mesma origem.

Gisele – No fim das contas, tudo é o quanto você tem consciência e presença dos estados, né?

Andrea – Exatamente. E não pode se apegar a nenhum. Porque na hora em que a gente se apega, a gente se perde. E é aí que na hora em que a gente está cantando rola o tempo de presença. Eu me apeguei porque a voz está legal, porque está bom…ferrou. Eu me apeguei porque está ruim, ferrou. Então, é o movimento. A única coisa que importa pra gente…o próprio som, a própria natureza acústica do som mostra isso pra gente. A única coisa que importa é o movimento. A única coisa que permanece, desta impermanência, é o movimento. Da impermanência pra permanência. Da impermanência pra permanência…é um movimento.

Gisele – Quando você levou no Caminho a escala cromática com todos os diapasões em seus lugares, você tirou um dos diapasões da escala e comentou: “se eu tenho uma sensação qualquer de falta, significa que eu já ocupei aquele espaço”…então, na verdade, eu sei, né?

Andrea – Isso. Exatamente. Se eu sinto uma falta é porque de alguma forma, eu já sei o que é que falta. Então, eu já estou preenchida. Então, eu sinto falta de tomar sorvete…eu não sentiria esta falta se eu nunca tivesse tomado. Então, não existe uma falta. Eu já sei da existência do sorvete, já sei do gosto dele, já sei da experiência de se tomar um sorvete. Então, eu não fico mais na falta. O problema da falta é quando a gente pensa que a falta está fazendo falta mesmo. Aí, a nossa mente fica ocupada na falta. Mas, se eu estou sentindo falta de um amor é porque eu tenho um amor. Então, ao invés de eu me apegar a este tamanho de amor que eu tenho, eu fico idealizando um tamanho de amor que eu poderia ter. Então, eu fico sentindo a falta daquele espaço idealizado e não ocupo o espaço amor que eu tenho…

Gisele – Presente.

Andrea – Presente!

Axé Odara!

Deixe um comentário